Durante mais de 40 anos o Teatro regional contou com esse gigantesco talento deste verdadeiro artista, natural de Buerarema. Nascido em 17 de janeiro de 1960, Ramon Vane Santana Fontes foi um dos fundadores do Grupo de Arte Macuco, que agitou o cenário teatral na Região Cacaueira, principalmente no eixo Buerarema/Itabuna/Ilhéus, ao lado de atores como Gal Macuco, Eva Lima, Jackson Costa, José Delmo e outros. Mas não era só isso: também foi advogado (e atuava nessa profissão!), poeta e artista plástico. Mas foi mesmo como ator que ficou mais conhecido, principalmente com seu personagem mais famoso, o "Louco". Além de dezenas de atuações nos palcos, também foi com ele que ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante no 44º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, no filme O Homem Que Não Dormia, de Edgard Navarro. Resgatamos uma entrevista "quase inédita" (estava offline há vários anos, lançada em um portal sobre Itabuna que não existe mais), realizada em 17 de janeiro de 2003, dia em que, comemorando seu aniversário, lançou seu livro de poesias Pé No Chão e Flores de Verão. Ramon Vane Faleceu em 15 de janeiro de 2017, vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Seu primeiro livro de poesia "Pé No Chão e Flores de Verão" pode ser definido como regionalista?
Sim, tomando por base o canto que faço destas glebas grapiúnas, embora transcenda os limites quando peregrina pelos assuntos mundanos que de qualquer maneira se filtram nesta geografia. Há um passeio sobre a existência do homem sobre a terra, sobre suas criações, sutilezas do seu viver, especulações sobre o "logos" deste viver - prosperidade e posteridade, a natureza, as desilusões e esperanças, tanto que o título nos encaminha para essas apreciações: "Pé No Chão" seria então o que razoavelmente pode-se explicar, sem que a explicação seja do fenômeno do ser, das coisas, pairado para ser dissecado na praticidade requerida; e, "Flores de Verão" abriga os devaneios da alma, emoções efêmeras ou eternizantes, poeiras filosóficas, busca de verdades, mística até!
Meus personagens, como o trabalhador rural em "Jesus Cacau"; como "Zé Pré Que Té", em "Magia Mata Atlântica"; "O Menino da Favela"; os pioneiros da Educação em Buerarema, os artistas, o padre, o pastor, os loucos em "Buerarema Macuco Jequitibá", também levam a obra a ser priorizada como grapiúna. Se questiono a Serra do Jequitibá também falo dos Andes, ou se digo bem-me-quer, também canto a rosa. Mas questiono a paz no mundo e as sujeiras que os homens fizeram no campo da paz, tão excessivamente danosas e desprezíveis, o que torna a obra universal.
Você também é bacharel em Direito, advogado, ator e diretor de teatro, artista plástico, garoto propaganda, como convive com tudo isso?
A poesia apareceu primeiro, e como um grande farol alimenta minha vida de fé e me deixa conviver tranqüilo com a ciência do direito. Tanto porque minhas especulações literárias cada vez mais agigantam a minha visão de mundo, quanto porque aumenta o meu conhecimento das letras, das linguagens, da comunicabilidade, tão essenciais na práxis jurídica. O direito é o homem civilizado e contemporâneo e a arte o seu fazer cultural. Não querendo afastar outros conhecimentos da cultura, mas aproximando cada vez mais a verdade que a arte é a maior expressão da cultura. A modalidade "arte" então funcionando como o universo do fazer, o domínio de suas técnicas e o primor de suas descobertas.
Ser advogado implica obedecer uma ética que traduz a satisfação de reparação de um direito, um dever, uma obrigação através da justiça. Justiça igual ao supremo valor de equilíbrio na convivência humana. Ser artista é fazer da política, o existencial. A partir da observação feita por Brecht, que uma folha que cai naturalmente da árvore, modifica a paisagem, e aí se encontra um ato político. O artista é justamente o que modifica. E, portanto, tem tanto a oferecer à ética, vista como o escopo do bem fazer, da busca do bem, oferecendo até exemplo de ética. Então, o advogado trabalha num campo de urgência necessidade pelos humanos na aplicação da justiça. E o artista labora com todas as manifestações de necessidade ou não da humanidade, mas tão intrínseco para o seu entendimento, muitas vezes transcendendo os basilares filosóficos ou históricos, cujo efeito exterioriza a sabedoria que o homem chega a atingir em tais épocas, lugares...
Você tem influência de algum outro poeta? Gente na família que também escreve? Convive com alguma escola literária? Quais seus métodos, se assim, podemos chamar do construir um poema?
Acredito que não. Mas para um poeta-leitor essa resposta é ineficiente. Leio Drumond, Gregório de Matos, Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa, Paulo Leminsky, Jorge Mautner, autores do Tropicalismo, (ultimamente leitor da Revista Cult) entre outros e cada um com seu manancial definido, criticado e estudado em suas nuances particulares, mas tão marcadamente pelo tempo, séc.XIX e XX cujo criticismo plural delineia os males e as buscas de argumentos salvacionistas deste tempo. Na minha família, meu avô (falecido), meu pai (falecido), meu tio paterno Ivo Fontes escreveram poesias, este último ainda escreve e publica nos jornais regionais. Nenhum com expressividade maior que produções de auto-consumo e limitada área de produção. Em 1976, fundei junto a Gideon Rosa e outros, na minha cidade o TLTB - Tablado Literário e de teatro de Buerarema, que se pretendeu fazer escola: intercâmbio com o Movimento Poetasia de Alfredo Simonetti, Damião, (SP), exercícios de criação a partir de temas comuns, jornaleco mensal, e pronto!
O grupo de Arte Macuco possivelmente tenha sido uma escola, no momento em que nos juntamos para fazer arte, para promover arte, como foi o caso dos 14 anos ininterruptos de "Feira de Arte de Buerarema", 1977-1991. Acredito muito na minha intuição, onde o que vem à tona, isto é, o momento em que pego a caneta ou o teclado para escrever, traz uma idéia que parece verso, que parecendo vezes nascem prontos. Lembro de Jean Genet quando diz que a emoção estranha até ao poeta é a poesia no seu mais profundo nascedouro. Assim, o poeta desconhece até mesmo aquela emoção que lhe veio absurdamente poética.
Pé No Chão e Flores de Verão são poemas que estão no livro, o propósito do que você se referenciou à razão e à emoção (acima) em relação à obra, também quer dizer que os poemas trazem essas conotações de per si?
Sim. "Pé No Chão" quer dizer uma situação de lucidez, uma pessoa lúcida, é sempre uma pessoa razoável. O que não significa do que desastroso possa ser a existência desta temerosa realidade, tendo como temos, a flagelação dos mais altruístas da razão. Sobremaneira canto a busca da paz, sem contudo deixar de dizer que é também cáustico ser lúcido, tão tempestivamente heterodoxo, mas tão compensador. E "Flores de Verão" parece metáfora, parece também que me refiro a flores que brotam apenas nesta estação. É minha maneira de ser otimista e cantar o belo em suas nuances próprias de fenomenalmente existirem. Mas também "verão" quer dizer de uma estação onde o colorido, o narciso, o descanso, estão em voga. São emoções comprometidas com a alegria e a iluminação que são irradiadas.
"Pé No Chão" eu questiono as adversidades criadas pelos poderes para a comunidade e a pessoa individualizada, submissa e limitada aos preceitos dos que tomam conta da administração estatal, clamando em cada verso a tomada de consciência, desta lucidez, para que possamos atingir o que de imaginário contem a liberdade, a conquista, a esperança, o equilíbrio social, a paz e o amor. "Pé No Chão" foi criado em 1980, justamente quando no Brasil institucionalizava o projeto de "Abertura" para sair do marasmo das idéias militantes e militares do aburguesado momento ditatorial desta nação.E ainda continua atual pois reclama a altivez humana em detrimento das políticas conservacionistas, patrulhas ideológicas, censura de qualquer forma que crassa o universo político estabelecido.
Tocou em política, permita uma opinião sobre Lula e o destino do País.
Acredito que será paulatinamente mudado o Brasil a partir deste próximo governo. Não é inviável o governo que pretende este líder que se diz esquerda vai dar à Nação. O que temo é sua tendenciosa fragilização operacional, cedendo cada vez mais aos mecanismos criados e fazendo conchavo com pessoas que já foram inteiramente comprometidas com outros modelos de governo. Tanto que há uma opinião formalizada por muitos críticos políticos de que o medo institucionalizado pela direita contra o PT, principalmente quanto à dívida estrangeira (FMI), latifúndios e propriedades abandonadas ou mesmo terras devolutas (reforma agrária), a erradicação da pobreza, o analfabetismo, e que tais resoluções poderão tornar-se excessivamente violenta ou hostil com as classes dos poderosos, gerando uma guerra civil. E, está bem claro, que não é este o escopo de toda luta, em escpecial, ultimamente, do nosso líder. Mas não haverá milagre de podermos em curto espaço de tempo termos o porvir que os educadores (ou pensadores modernos e iluminados) almejam.
Quais os gêneros literários que mais lhe atraem? Você se acha inserido nestes gêneros?
O Realismo-fantástico, porque seus criadores e seguidores nos dão uma visão maior dos acontecimentos, com possibilidades explicadas pela fé, pelo que acreditam seus personagens, enriquecendo o que se quer contar. Sim, eu me acho inserido, quando, por exemplo, no poema "Magia Mata Atlântica" , eu referencio as lendas nacionais e na lenda toda criação é possível., para dizer da dimensão que é o problema ecológico e a necessidade de uma nova postura para com o nosso meio-ambiente.
Você homenageia pessoas como Profa. Rita Fontes, Geraldo Vandré, por quê?
Eu apenas dediquei "Itabuna de Corpo e Alma" a Tia Rita, porque sendo a primeira mulher baiana a candidatar-se, a primeira vereadora (mulher) de Itabuna, uma história de educação cristalizada pelo seu corpo docente que marcadamente deixou tais legados a história desta cidade. E muito me apraz ter dedicado a ela, conquanto no poema saúdo como uma grande luz outra mulher, a filósofa Valdelice Pinheiro, são valores que em si encerram infinidade poética. Geraldo Vandré eu faço uma elegia, pelo mito, pela fase que se instaurou este mito, pela sua vida e influencia no todo.
Autor do Hino de Liberdade "Para Não Dizer Que Não Falei das Flores", nos anos 60, virou material do meu devaneio poético. E, tantas reminiscências que em outros poemas vão fazer presentes tantos e quantos artistas sejam do universo que de uma maneira ou de outra entram na espiral do meu devaneio.
Como você acha que será absorvido o seu livro aqui na região?
Acredito que vai ser um produto vendável, porque é formado por metade de poemas conhecidos e que são festejados com muito aplauso pelo público regional, são repetidos por estudantes, outros poetas, muitos foram musicados, como por exemplo, "Prosoema Pra Ocê Ará", virou rap com Jackson Costa e Carlinhos Brown, em 1994, no CD Timbalada II; "Aracauã", virou reggae-canção com Ébano; "Vodka" virou rock, com Luiz Coelho; "Línguas", virou fado com Fernando Caldas... quem é fã vai querer e já somam muitos fãs. São 500 exemplares, vou ter que trabalhar uma segunda edição, com certeza.
E, 30 poemas são inéditos. Tem um mesmo de quatro folhas, que é o poema que mais estou curtindo até agora, talvez seja o que direi no lançamento... questiono meu próprio viver e comparo-me a uma árvore, preferindo salvar-me mesmo se for através de um raio daqueles que decepam milenares carvalhos, oliveiras, e/ou jequitibás... ou seja mesmo uma forma de expressar meu perquirir encontrar um outro lado que não esteja com a filosofia, a religião, mas dentro do antropológico, tão ainda dentro de focalizações repetidas, mesmas fórmulas, sem permissão do outro lado, um lado ainda não questionado, um lado perfeitamente capaz de revolucionar tudo que já apareceu!
Obs: O perfil de Ramon Vane no Facebook continua online, com centenas de fotos e comentários, pois ele era um grande usuário dessa plataforma. Visite: https://www.facebook.com/ramonvane.santanafontes
Nenhum comentário:
Postar um comentário