Félix Severino do Amor Divino


O pioneiro sergipano e o mito fundacional de Itabuna

A fundação de Itabuna, cidade que floresceu no coração da região cacaueira do sul da Bahia, está intrinsecamente ligada à figura de Félix Severino do Amor Divino, um nome que se tornou o pilar da memória oficial e da identidade local. A historiografia tradicional, pautada em narrativas memorialistas regionais, especialmente aquelas consolidadas na década de 1960 por ocasião do cinquentenário da emancipação política, atribui a ele e a sua família o mérito exclusivo de terem lançado os fundamentos de uma próspera e futura cidade. Em meio a essa construção histórica, emerge um relato heroico e, por vezes, mitológico, que destaca o imigrante sergipano como o agente precursor da civilização grapiúna.

Félix Severino de Oliveira, como também era conhecido, era natural da Chapada dos Índios, em Sergipe. Sua chegada à região sul da Bahia ocorreu em um contexto de intensa migração, a partir de meados do século XIX (cerca de 1850), quando a crise no sertão sergipano e a promessa de riqueza na nascente lavoura cacaueira baiana impulsionaram levas de sertanejos e sergipanos. A historiografia aponta que esses migrantes vieram em busca de terras férteis e oportunidades, com o intuito de "conseguir um lugar debaixo do sol, para dissiparem os males sofridos em outras regiões".

Em 1857, Félix Severino do Amor Divino, junto ao seu companheiro, o crioulo Manoel Constantino, iniciou o povoamento da área que se tornaria o núcleo original de Itabuna. Segundo os relatos, após chegar a Ilhéus e buscar informações no Banco da Vitória, ele se dirigiu para um local indicado como propício para "botar uma taboca (roça)". A descrição desses primeiros momentos, feita pelo memorialista Oscar Ribeiro Gonçalves, evoca um cenário intocado, no qual o imigrante e seu companheiro contemplavam "a mata, os caboclos e as feras [que] eram seus únicos vizinhos", numa tentativa de inscrever a "verdadeira" história de Itabuna com um tom de romance e desbravamento.

A primeira moradia erguida por Félix Severino do Amor Divino foi uma pequena cabana, construída na margem direita do rio Cachoeira. Este local ficou conhecido como Marimbeta, que hoje corresponde ao bairro Conceição. O companheiro, Manoel Constantino, por sua vez, estabeleceu sua cabana na margem esquerda, onde mais tarde se desenvolveria a Praça Olinto Leone. No entanto, a narrativa memorialista que descreve a região como um "lugar ermo" e "floresta intocada" é historicamente problematizada, pois o território era habitado por populações indígenas e já contava com o importante aldeamento de São Pedro de Alcântara em Ferradas (lugar de povoação de índio), que servia como entreposto e via de acesso na região.

A consolidação do arraial, inicialmente conhecido como Tabocas, ocorreu dez anos após sua chegada. Foi nesse momento que Félix Severino do Amor Divino enviou a busca pela sua família remanescente em Sergipe, na Chapada dos Índios. Entre os parentes que atenderam ao chamado e migraram para a nova fronteira cacaueira estava José Firmino Alves, seu sobrinho. A família, ao se estabelecer, atraiu mais colonos e "lançara os fundamentos de uma próspera e futura cidade".

A imagem de Félix Severino do Amor Divino foi intensamente cultivada pela elite intelectual e política nas décadas seguintes. Os memorialistas o reverenciavam como um precursor do progresso e da modernização, e sua figura foi repetidamente eleita para protagonizar a história de Itabuna. Por exemplo, José Dantas de Andrade (1968) chegou a sugerir que, em homenagem ao pioneiro sergipano, fosse erguido um busto no local da primeira casa da cidade. Essa construção narrativa, frequentemente repetida, inclusive em obras acadêmicas, estabeleceu a identidade de Itabuna ligada à origem dos imigrantes sergipanos, distanciando-a de Ferradas e do núcleo de povoamento indígena.

A exaltação de Félix Severino e outros sergipanos como "desbravadores, pioneiros" e "homens simples e trabalhadores" possuía um claro viés político na década de 1960. Ao enfatizar a origem humilde e o esforço braçal dos fundadores, a elite cacaueira da época procurava legitimar seu poder e riqueza como uma "herança de trabalho", minimizando as tensões sociais decorrentes da organização dos trabalhadores rurais e distanciando a história de Itabuna das "práticas arcaicas da antiga aristocracia" ligadas ao trabalho escravo, associadas à vizinha Ilhéus.

Dessa forma, a biografia de Félix Severino do Amor Divino transcende o relato individual, tornando-se uma metáfora para a própria história oficial de Itabuna. O fundador, descrito como aquele que "encontrou [Itabuna] no mato e entregou ao seu sobrinho José Firmino Alves, o qual lhe soube dar boa criação, educação, instrução e beleza" (Andrade, 1968, p. 18), simboliza o início da "civilização grapiúna". A permanência de seu nome em logradouros, monumentos e na memória local assegura seu lugar como ícone do pioneirismo sergipano, um alicerce inabalável da identidade cultural e histórica da cidade. O artista plástico Walter Moreira, um dos que retrataram o cotidiano local, era, inclusive, descendente de Félix Severino de Oliveira. A figura de Félix Severino do Amor Divino funciona como um farol na névoa do passado: ele não apenas deu início ao povoamento, mas também personificou a narrativa de esforço e ascensão que a elite local escolheu perpetuar.