A história não registra seu berço, nem a saga familiar que o trouxe ao sul da Bahia. Para a Itabuna dos anos 50 e 60, Manoel Pereira Gonçalves simplesmente existiu, um enigma barbudo que a memória popular batizou de "Papai Noel" pela óbvia semelhança com o mito ocidental. Mas nosso Papai Noel tropical era mais do que uma caricatura natalina: era o contraponto vivo, o sarcasmo encarnado, a antítese filosófica de uma cidade "mergulhada no egocentrismo, na individualidade e na falta de amor ao próximo". Ele se tornou, sem querer, a estrela maior de um palco improvável, deixando um vazio biográfico que só exalta sua aura: afinal, “Papai Noel” nunca disse a ninguém onde nasceu, viveu, ou quem eram seus pais.
Seu ponto de observação era estratégico: a porta do Cine Itabuna. Ali, ele reinava como a “marca registrada de uma geração” que buscava escapismo na tela e encontrava a realidade mais dura e fascinante na calçada. Carrancudo e sério, ele era o guardião do templo da sétima arte, um mestre da introspecção cujos olhos profundos exprimiam a dureza material da vida. No entanto, a sua presença, alimentada pela bondade de terceiros como o saudoso Bionor Rebouças, era a prova viva de que a solidariedade ainda respirava, mesmo que timidamente, na paisagem urbana.
O nosso herói, porém, não era feito só de seriedade e reflexão. Papai Noel carregava um charme irreverente e bem-humorado, uma dose de swing inesperada que o ligava diretamente à efervescência jovem da época. O artigo imortaliza o seu gesto mais audacioso e gentil, aquele que o tirava da apatia aparente e o colocava na lista dos crushs inesquecíveis: o Papai Noel das tardes de cinema “entre um cochilo e outro, ainda tinha energia para dar uma beliscada carinhosa nas pernas das gatinhas que passavam à sua frente". Um flerte histórico, um toque de ternura vintage que selava sua popularidade.
A comunidade o adorava não apenas pelo folclore, mas pela carga simbólica de sua vida. A meninada e os mais velhos nutriam por ele “um carinho todo especial, como se aquele ser humano fosse a reencarnação de um grande espírito” enviado para reeducar os itabunenses. A ironia era sublime: o homem mais pobre da rua era, na verdade, o mais rico em significado, pois sua mera existência era o espelho que a sociedade egocêntrica não queria olhar. Sua presença era um convite perene à meditação.
Apesar da carcaça maltrapilha da velhice, a história é enfática ao exaltar a força de um passado não revelado. Seu corpo, “apesar da idade, dava sinais de que, na mocidade, Papai Noel foi um ser humano forte e robusto", escreveu um jornalista da época. Esse vigor ancestral reforçava a sua estatura lendária, sugerindo que o homem escolhera, ou fora levado, a viver uma existência de despojamento voluntário ou forçado, mas sempre com dignidade. Seu mistério nunca foi desvendado, e a ausência de dados biográficos completos apenas consolidou sua lenda como um espírito livre.
Assim, Manoel Pereira Gonçalves não nos deixou presentes materiais, mas um legado imensurável que transcendeu sua morte em 7 de agosto de 1967. Ele foi um "exemplo para toda uma geração", um filósofo da calçada que ofereceu à cidade a “lição de humildade, da compreensão, da fraternidade e da justiça social.” Papai Noel de Itabuna é a prova de que a maior riqueza de um homem pode residir na mais absoluta pobreza, e que o humor e a ternura podem ser as ferramentas mais eficazes para a crítica social. Sua vida simples permanece, até hoje, uma das mais elaboradas peças do nosso folclore urbano.